Ele Habita em meus Ombros - Parte II
Segunda parte de um conto sobre a sombra que cresce no silêncio
Esta é a segunda parte de um conto. Para ler a primeira parte, clique aqui.
Já fazia alguns anos que estávamos juntos, Nekar e eu. Ele apareceu do nada, uma figura pequena, estranha, um tanto assustadora, mas inquietantemente fascinante. Desde então, nunca estivemos separados, sempre me acompanhando e à espreita. Ela me conhece tão profundamente, uma intimidade que me apavora. Enquanto eu não sei nada sobre ele. Aos poucos, ele consome minha alma, e eu, sem saber como resistir, deixo ele levar.
O terceiro ano do ensino médio foi um grande borrão. Me isolei ainda mais, me afundei em meus vícios um pouco a cada dia, gastava meu tempo com futilidades e o único som que eu ouvia era a sua voz. Eu ia ao colégio cumprindo meu papel de bom filho, estudava, tentava tirar boas notas, performava uma estabilidade que não existia. Meu medo era que meu pai descobrisse e me pusesse de novo por uma situação inútil e vexatória. Era melhor ele acreditar que eu estava bem, e que seu teatro funcionou.
No mesmo ano, a pressão veio como um soco no estômago. Meu pai, advogado respeitado, dono do próprio escritório e com clientes importantes em seu currículo, queria que eu seguisse em seus passos. Ele foi o primeiro da família a ter ensino superior, não poderia ser eu que daria vergonha a família. Mesmo que eu não quisesse isso para minha vida. “E você quer algo da sua vida?” Nekar me provocava. Ele estava maior, muito maior. Ficava nos meus ombros, encurvado, seu peso era insuportável, pelo menos no começo. Depois me acostumei a andar encolhido e sentir suas garras do pé atravessarem minha pele como raízes secas. Suas palavras possuíam razão. Não há nada que me faça caminhar adiante. Não desejo, não construo, não espero. Meu único talento é a ruína. E minha maior obra... sou eu mesmo.
Num domingo qualquer, Nekar gritava no meu ouvido, ria da minha situação, me chamava de fraco, de inútil, de peso. Lembrava da expressão de Raquel naquele fatídico dia, dos xingamentos dos meus amigos, do desprezo dos colegas de classe, do padre velho e de olhos acinzentados que tentou expulsa-lo do meu corpo. Nada disso funcionou. Passava os dias sofrendo na minha própria cabeça, definhando aos poucos enquanto o tempo passava por mim. Eu estava no meu limite e havia apenas uma solução. Entrei no banheiro, engoli diversas pílulas que encontrei pelo armário, sem saber para o que eram e nem se funcionariam. A última coisa que eu vi foi o rosto da criatura, satisfeita. Quando acordei, minha mãe estava com seus dedos na minha garganta e eu expelia tudo que estava no meu estômago. Ainda assustado, chorei em seus braços como nunca antes. Ela me abraçou e ficamos assim por um tempo, sentados no chão gelado do banheiro enquanto ela falava baixinho “Eu estou aqui, Rafa. Eu tô aqui.” E isso me acalmou. O demônio apenas observava a cena, satisfeito.
Tentei explicar para ela meus sentimentos, desviando de situações específicas, sem citar Nekar ou o que meu pai fizera. Ela me olhou com preocupação, disse que iria falar com meu pai. Eu implorei para ela não contar, ele não poderia saber, eu tinha medo do que ele poderia fazer. Ela viu meus olhos cheios de lágrimas, talvez tenha enxergado o medo neles. Me envolvendo num abraço caloroso, ela concordou, mesmo sem entender direito. No dia seguinte, conversamos e prometi nunca mais fazer isso. Estranhamente isso a acalmou. Como se fosse apenas um episódio avulso. Ela ainda se manteve preocupado, mas, enquanto eu fingisse ser um bom filho, não disse mais nada.
Logo me formei no ensino médio. Não fui à formatura, nem carreguei memórias boas desses anos. Comecei a estudar para o vestibular, fiz um cursinho privado que meu pai me forçou a comparecer todos os dias. Estudava das oito da manhã às oito da noite. Minha mente era populada por frações matemáticas, regras ortográficas, pessoas que morreram há vários séculos e o medo de falhar. Nekar colocava combustível nesse medo, sua voz começou a ter efeitos cada vez mais devastadores em meu corpo. Eu passava mal quando pensava na prova e na possibilidade de falhar, eu emagreci alguns quilos e não tinha apetite nenhum na hora de comer, e raspei a cabeça para não precisar ter que cuidar do meu cabelo. Chegando na maioridade, voltei a beber. Agora sozinho. Ou melhor, só eu... e Nekar.
No final de tudo, mesmo com tanto medo, eu acabei passando na faculdade que eu queria — ou que meu pai queria. A adaptação foi difícil, não conhecia ninguém, não sabia muito bem o que fazer. Aos poucos fui me encontrando e então eu percebi: não era tão ruim assim. A dinâmica de uma universidade era alienígena para mim, os alunos não se importavam tanto com a vida mediana dos outros como era na escola. As pessoas pareciam mais... livres? E essa liberdade atiçava o demônio como nunca antes.
Foi numa sexta, após a aula, no final da tarde. Eu queria correr para casa dormir e me isolar como sempre. Arrumando meus pertences e minha mochila foi quando alguém se aproximou de mim. Seu nome era Tiago, um jovem alto, de pele negra, cabelo escuro e bem cortado nas laterais, usava roupas estilosas e um tênis grande e bonito. Já havíamos conversado uma ou duas vezes, e percebi que era um rapaz simpático. Ele me chamou pelo nome e disse “Nós vamos no bar aqui perto. Quer vir conosco?” Admito que fiquei confuso, surpreso até. Me chamarem para sair assim parecia estranho. Eu balbuciei e ele deu risada, me incentivando de novo a ir. Nekar sussurrava que ele não era confiável. Não era normal uma situação como essa acontecer comigo. Ele tinha razão, mas eu estava ansioso pra tomar um porre.
Fomos eu, Tiago e mais duas pessoas que eu mal lembro o nome. Conversamos a noite toda, rimos, contamos histórias, bebemos e comemos porções de qualidade questionável. Nekar falava, mas sua voz parecia ser abafada pelos outros sons ao redor, pela risada de Tiago e de como ele segurava seu copo, apenas com dois dedos. Ele era um bêbado engraçado. Nos dias seguintes conversamos mais, saímos nos meses seguintes diversas vezes. Nos tornamos próximos. Tínhamos várias aulas juntos, e a solidão não se fazia tão presente quanto antes.
O demônio ainda falava o quanto, na verdade, Tiago me odiava e um dia ele iria me deixar, como todos me deixaram. Eu tentava não dar ouvidos a ele, mas o medo ainda era real. Só que Tiago era um refúgio no meio de tanta gente insuportável na universidade — e haviam muitas —, e as palavras de Nekar não eram tão presentes quando nos divertíamos.
Logo veio o segundo semestre, eu estava cansado do período de provas e trabalhos. Tentava relaxar, mas ficar em casa era um ambiente opressivo demais. Meu pai me olhava feio quando me via sentado sem fazer nada, enquanto minha mãe me olhava com medo e preocupação de eu tentar algo de novo. Eu precisava sair dali de alguma forma. Então, Tiago, como se tivesse ouvido minhas preces, me contou que vagou um quarto na república que ele estava morando. O preço não era tão exorbitante, e a república possuía quartos bem reservados para cada pessoa.
Falei com meus pais e eles pareciam indispostos a me ajudar. Consegui convencê-los dizendo o quanto isso iria me ajudar nos estudos e a ser mais independente. Meu pai concordou em me ajudar a pagar até eu conseguir minha própria renda. Dinheiro não era problema para ele — o orgulho que era.
Me mudei no começo de agosto para o meu novo quarto. A casa era antiga, com cômodos amplos, e adornava um certo ar de decadência charmosa. As paredes tinham camadas de tintas sobrepostas e descascando, e nelas eram rabiscadas mensagens de antigos moradores como lembretes de um passado esquecido. Eram sete quartos ao todo, divididos num corredor estreito. Seis pessoas viviam ali oficialmente, mas era normal que parceiros, amigos ou visitas esticassem colchões e passassem dias ali. A sala tinha um sofá grande e manchado de cerveja, uma televisão plana, mas pequena, e alguns posteres políticos pendurados com fita adesiva. Sobre a mesa de centro havia livros de teoria espalhados e controles de videogame descarregados. A cozinha tinha uma geladeira cheia de recados passivo-agressivos, uma prateleira marcada com nomes separando os pertences, uma pia constantemente cheia de louça suja e postas como um quebra-cabeça. No quadro de avisos haviam compromissos acadêmicos marcados entre piadas internas e desenhos obscenos. A convivência com os colegas era barulhenta, repleta de discussões rápidas e silêncios constrangedores. Mas havia afeto, daquele que é desenvolvido quando se divide um teto, louça e crises pessoais com pessoas tão diferentes.
No primeiro dia conheci uma delas, Maria, ela fazia oceanografia e que antes desse dia eu não sabia do que se tratava. Ela me explicou com uma empolgação que eu nunca havia tido quando falava do meu curso — admirei-a por isso. Viramos amigos logo. Nekar parecia desconfortável com o ambiente, muitas pessoas, muitas vivências, seus comentários maldosos caiam por terra logo que eu conversava com alguém. Eu fui me adaptando e Tiago me ajudou muito nessa transição. Éramos quase inseparáveis, estudávamos juntos, saiamos juntos, íamos a festas juntos, voltávamos para o quarto dele e passávamos algumas madrugadas jogando seu videogame na sua pequena tela do computador e ouvindo as suas bandas favoritas. Tiago tinha uma paixão incontrolável por música, tocava vários instrumentos e compunha algumas próprias. Não eram perfeitas, mas carregavam muito de si nelas, o que as tornavam cativantes. Ele me incentivava a buscar interesses fora da faculdade também. Sempre tive um apresso muito grande por cinema, então toda quarta a noite assistíamos diversos filmes diferentes e íamos à cinemas de rua sempre que podíamos. A sétima arte logo ser tornou uma paixão e as vezes eu sonhava em criar meus próprios mundos audiovisuais.
Numa festa qualquer dentro do campus, a música era abafada como se estivesse submersa. Eu estava encostado na parede descascada do prédio, o copo pela metade balançando na minha mão suada. À minha frente estavam alguns amigos, outros conhecidos, dentre eles Tiago e Maria. Ele se virou para mim e disse algo, mal consegui ouvir, mas dei risada junto com ele. Olhei para o seu sorriso, para os seus olhos escuros como a noite e brilhante como as estrelas, olhei para os seus lábios grossos, para a sua mão tocando meu ombro. Meu coração parecia se acelerar. Tiago se virou por um instante, olhei para sua nuca e seus cabelos suados de tanto dançar. Senti um nó no estômago. Era um sentimento pequeno, quente, um desejo em formação. Baixei os olhos imediatamente, envergonhado, com as orelhas queimando.
“Os seus amigos do colégio tinham razão.” O demônio, pela primeira vez na noite sussurrou suas palavras envenenadas no meu ouvido. Eu tentei não olhar, tentei ignorar como eu havia feito nas últimas semanas. Uma tentativa desesperada de fugir da sua presença corrosiva. “Eles riam de você por muito menos do que isso. E agora você quer o que? Há!” O mundo girava. Cheiro de álcool, de suor, de perfume doce até demais, era sufocante.
“Você tentou ignorar isso. Tentou apagar esse lado. Mas sempre esteve aí, sempre volta uma hora ou outra.” Eu apertei o copo até a borda trincar. Uma gota escorreu, me assustei. Pensei que fosse sangue. Mas era só cerveja, quente e amarga. Sai dali, sem falar com ninguém, sem coragem de olhar para as pessoas à minha volta. Fui até o estacionamento e tentei pegar um ar. As sombras engoliam a noite, e as poucas luzes que iluminavam os carros começaram a vacilar. Uma brisa gelada fez com que os galhos das arvores farfalhassem como sussurros distantes. Foi quando eu percebi — algo se movia. Agachado, disforme, um vulto se arrastava em minha direção, rindo silenciosamente, exibindo um sorriso que eu conhecia bem até demais. Podre, faminto, cheio de dentes afiados e perversos.
“Vai. Toca nele. Fala com ele. Tenta algo como você tentou com Raquel. Sabe como ele vai te olhar depois?” A voz era um veneno frio, que se arrastava junto de seu corpo esquelético. Seus membros se esticavam em proporções monstruosas, como patas de aranha, e suas garras eram lâminas afiadas cravadas no chão. Nekar se mostrava por completo, com seus dentes à expostos, língua seca e grotesca balançando, um ser animalesco, doente, visceral.
“Com nojo”
Eu sai correndo dali, cambaleando, atordoado. Vomitei atrás de um carro antes de continuar minha jornada torpe. Não sei como cheguei em casa, mas me tranquei no quarto e fiquei sentado no chão, com o rosto formigando. Tudo latejava. Eu via o rosto de Tiago e o toque que ele me deu no ombro. A sensação queimava dentro de mim. Eu queria mais, e eu me odiava por isso. O que pensariam de mim? Fui até a cozinha e peguei uma garrafa de vodca que não era minha, e bebi como quem queria apagar um incêndio com gasolina.
“É assim que eu gosto.”
No dia seguinte acordo de ressaca. Envergonhado com o que acontecera e com o que eu senti. Com os olhos cerrados pego o celular e vejo mensagens de Tiago perguntando onde eu estava. Decido responder depois. Ou nem responder. O demônio estava sentado sobre a mesa, e não sobre mim como eu imaginei que seria. Ele parecia ansioso, seu rosto repleto de rugas e marcas sorria para mim como quem esperasse ansiosamente por algo. Talvez ele quisesse ver como eu iria lidar dali por diante com tudo. Quando Nekar estava assim, sem fazer nenhum comentário, é porque ele tinha certeza que eu mesmo iria me afundar, ele precisava apenas observar tudo de camarote.
Encontrei Tiago na cozinha. Ele perguntou de novo onde eu me meti. Respondi que eu passei mal e voltei pra casa. Evitei olhar em seus olhos. E continuei evitando-o pelos dias seguintes também. Ele não entendia direito o que estava acontecendo, vinha conversar comigo e eu o tratava friamente. Falar com ele é repetir aquele momento na festa em círculos na minha cabeça. Nekar elogiava de forma irônica minha coragem. Começo a evitar outros amigos meus, a sentar sozinho nas aulas e me isolar no quarto.
Um dia, deitado na cama olhando para o teto e ouvindo Nekar despejar maldições sobre mim, alguém bate em minha porta. Era Maria. Estava preocupada comigo, viu que eu estava me isolando e evitando a todos. Tiago também estava preocupado, mas não sabia o que fazer. Conversamos um pouco, eu evito falar o que estava acontecendo de verdade, digo que estou estressado com as minhas obrigações e assuntos familiares. Ela sabe que é mentira, mas não pressiona pela verdade. Depois disso, ela me convida para um café após a aula. Tenho vontade de negar, mas ela insiste. Não consigo dizer não dessa forma. Depois da aula, Nekar diz para eu furar, voltar para casa, nada de bom sairia disso. Eu tento ignorar.
O café é pequeno, aconchegante, os atendentes atenciosos e prestativos, apesar do preço ser meio salgado. Eu peço um cappuccino, Maria pede um café sem açúcar. Pegamos uma mesa na parte de fora, sentindo o vento do final de tarde do verão. Final do semestre sempre foi difícil, esse parecia especialmente complicado. Estava terminando o meu primeiro ano na faculdade, as vezes eu nem sei como eu sobrevivi. Nekar diz que foi sorte, e provavelmente foi mesmo. Conversamos um pouco, Maria fala da sua vida, da sua namorada, do time de futebol da atlética, das provas... até que ela começa a falar da festa. Eu tento desviar o assunto, mas ela me fita com seus olhos tenazes. “O que aconteceu?” Ela não me deixa fugir do assunto. Eu hesito, não vou falar o que realmente aconteceu. Do que eu senti..., mas eu poderia falar de outras coisas. Descrevo a sensação claustrofóbica, a cabeça girando, o peito apertado, a falta de ar... só não falo do demônio, mas falo do medo. Ela meu ouve calada, atenciosamente, com seus braços cruzados e me analisando sem tirar os olhos. Eu desvio os meus enquanto conto, mantendo a cabeça abaixada.
“Que humilhação.” A criatura pesando em meus ombros fala com um tom entediado e de chacota. Maria bebe seu café e quando eu termino, ela respira fundo. Pensa um pouco.
“Isso me parece muito com uma crise de pânico.” Ela começa a falar que já passou por isso e me entende. Começa a dizer sobre como é difícil lidar com isso, e que com gentileza, terapia e tentar um pouco cada dia mais, eu posso melhorar. Seus olhos são gentis, suas palavras doces. Maria é uma boa amiga, uma das melhores, me sinto acolhido. Mas o demônio ri baixinho, ele sabe muito bem o que eu estou pensando: tudo isso é uma babaquice sem propósito.
Não falo nada à Maria, apenas aceno e ouço seus conselhos. Praticar esportes, conversar com os amigos, procurar ajuda profissional. Uma grande besteira. Ela pega o celular e me manda o contato da sua antiga psicóloga, diz que ela faz um preço social para estudantes. Eu agradeço, digo que vou pensar. Ela contorce os lábios, acho que percebeu minha mentira. Novamente, olha para mim fixamente, eu desvio o olhar. Ela suspira e parece desistir de continuar insistindo. Antes de irmos embora, Maria aponta para mim e diz: “Mas você precisa falar com o Tiago. Ele acha que fez algo de errado.” Eu fico desconfortável, mas resolvo seguir o conselho. Nossa amizade é importante demais para deixar escapar entre meus dedos dessa forma.
Converso com Tiago no dia seguinte. Falo que eu estava mal, estressado com o fim do semestre, dou meias desculpas. Ainda não consigo encará-lo de frente. O demônio insiste em lembrar dos meus pensamentos confusos durante a festa. Não sei como interpretá-los ainda. Nas semanas seguintes, nos reaproximamos aos poucos, mesmo que eu ainda mantenha uma barreira entre nós dois.
Algumas semanas se passam. As férias de fim de ano se aproximam e o período de provas está praticamente terminado. Sinto-me exausto, pensando no que fazer durante as férias. Enquanto eu arrumo o meu quarto, Maria me manda uma mensagem. Ela diz que irá organizar uma festa de fim de semestre na república e que eu estou convidado e posso chamar quem eu quiser. Não que eu tenha quem chamar, mas fico feliz com o convite.
No dia da festa, penso em não comparecer, mesmo sendo na república que eu moro. Da ultima vez que estive numa festa, as coisas não foram muito bem. Nekar ri de mim e da minha covardia. Fala que seria melhor ficar no meu quarto, ou fugir para um lugar bem longe. Talvez eu faça isso. Sinto minha cabeça pesada, Nekar rasteja até a minha direção. Seus movimentos são lentos, repulsivos. Com as suas garras, ele começa a escalar as minhas costas. A dor é aguda, mas familiar. Ele estava tão grande, tinha mais de um metro de altura, talvez mais, é difícil ter certeza. O ar se enche de um cheiro sufocante de enxofre. Seu hálito quente gruda na minha pele, sua textura áspera me arranha, deixando marcas nos braços. Em segundos, ele alcança seu trono habitual: meus ombros. Postado ali como uma gárgula viva, uma sombra colada à alma, a maldição que nunca me deixa.
A porta do meu quarto se abre, sem aviso prévio. Dela surge Tiago, espantando-me com sua voz alta e grossa. “Eu tava te procurando! Tem gente chegando já. Vamos logo!” Ele me puxa pelo braço. Eu penso em resistir, mas seus olhos brilhavam com um semblante vivo e caloroso que faltavam nos meus. Levanto-me com a sua ajuda. Troco minha camisa rapidamente e saio do meu quarto.
Me deparo com uma multidão de pessoas na casa. Espalhadas pela sala, sentadas no chão dos quartos, encostadas na parede do corredor bebendo, conversando no quintal e dividindo um cigarro. A música estava alta, mas não o suficiente para abafar as vozes. Tocava uma playlist que misturava de músicas pop, funk, brega, pagode, axé, tudo que fizessem as pessoas sentirem vontade de mexer seus corpos intoxicados por álcool. E foi o que Tiago fez. Ele me puxava enquanto saltitava e cantava uma música que eu nunca havia escutado. Lembro do sorriso do demônio naquela noite escura, rastejando pelo estacionamento. Eu nego o convite com um sorriso e digo que vou pegar uma bebida. Ela dá de ombros e se vira para continuar dançando com outros desconhecidos.
Pego uma cerveja para mim. O gosto amargo parece lavar um pouco a minha alma. Alguns semi-conhecidos passam por mim e fico sem saber se devo cumprimentá-los ou não. Nekar fala para eu abaixar a cabeça, e eu o faço. Evito seus olhares. Não sei lidar com estranhos. Fico observando a decoração improvisada, os LEDs na parede iluminando a sala de um tom purpura vibrante. Me mantenho parado no canto da sala, com a cerveja esquentando em minha mão, e olhando para o celular como quem estivesse respondendo mensagens.
Ouço uma risada familiar próximo de mim. Maria surge de repente e me abraça. Fico sem reação por um instante, mas retribuo o afeto. Nos tornamos bem próximos nas últimas semanas. Ela ri, pergunta como eu estou, respondo que um pouco deslocado. Ela sorri com a minha resposta sincera, seus olhos são gentis. Ela puxa o meu braço e diz “Rafa, vem cá. Quero te apresentar alguém.” Um passo adiante, é quando eu a vejo pela primeira vez.
Maria cutuca a garota e ela se vira. Ela tinha o rosto delicado, com covinhas que surgiam enquanto sorria — e ela sorria muito. Os cabelos loiros cortados num bob curto emolduravam seu rosto redondo com naturalidade. Seus olhos verdes eram grandes, atentos, observando cada centímetro do que estava a sua frente. Usava uma maquiagem sutil, mas bem pensada: uma sombra clara nos olhos, rímel que alongava ainda mais seus grandes cílios, um leve brilho nos lábios, como se houvesse acabado de molhá-los com a língua. Usava uma blusa de alcinhas de tecido leve, e uma calça jeans de cintura alta que realçava sua silhueta. Tudo nela parecia muito espontâneo, como se ela tivesse se arrumado em menos de cinco minutos, mas tivesse acertado em absolutamente tudo. “Esta é Laura! Esse aqui é o Rafa.” Diz Maria sorrindo e arrastando sua fala um pouco por conta da bebida.
Eu puxo um pouco minha gola em reação a ela. O ambiente parecia mais quente. Laura estende sua mão e sorri, como quem percebesse minha timidez ela falou “Você parece querer fugir de alguma coisa.” Eu fico meio sem saber o que responder. Balbucio algo inteligível, baixinho e estendo minha mão até a dela. Me sinto completamente exposto pelo seu comentário..., mas também me sinto visto de alguma forma.
“Vai fazer papel de idiota de novo? Ela vai rir igual todos os outros” as palavras de Nekar perfuram meu peito. Até que ouço a voz de Laura soando pelo espalo, e meus olhos encontram o dela. Por um instante, a voz do demônio é completamente abafada.
Fico meio extasiado, como se houvesse sobre algum feitiço. Hipnotizado pelos olhos e pelo sorriso daquela pessoa, que eu nunca havia visto antes e só soubera seu nome há poucos minutos. Maria conversa conosco por muito tempo, intercedendo e me ajudando a me sentir mais confortável. Laura pergunta sobre mim e sobre meu curso. Tenho medo dela pensar mal de mim, até penso em mentir por um segundo. Mas eu respondo suas perguntas com a maior sinceridade, como eu nunca havia feito antes. Ela é estudante de Letras, apaixonada por romances policiais e clássicos russos. Seus olhos brilhavam falando de Crime e Castigo e arranhando a garganta para pronunciar o nome de seus autores. Eu sentia uma compulsão por saber mais sobre ela, tentava perguntar sobre seus interesses mesmo que eu sentisse relutância. Não sabia o que ela poderia estar pensando de mim, mas neste momento, não importava.
A festa continua noite à dentro. Maria se levanta quando ouve sua música favorita. Bêbada e animada, solta um grito e começa a dançar se afastando de nós dois. Eu fico desconfortável sem o amparo de Maria, cutuco meus dedos e desvio olhar. Laura, talvez por perceber minha timidez, sorri gentilmente e pergunta se quer ir para o quintal e evitar um pouco da multidão. Eu aceito, guiando-a pela casa até chegarmos a uma das mesinhas postas no quintal. Conversamos mais um pouco, ela fala de suas músicas favoritas, da faculdade, de algumas histórias engraçadas. Eu me sinto estranhamente leve. Naquela madrugada abafada de sexta-feira, envolta pela escuridão que não parecia ter fim, Laura era uma brasa acesa no escuro.
Porém, ela não era a única coisa que brilhava na noite. Dois pontos luminosos surgem atrás dela, se aproximando aos poucos. “Você acha mesmo que ela vai te salvar?” A voz era visceral, e por um instante, eu achei que ela não viria. “Ela vai ver. Uma hora, todos veem.” Nekar se aproximava de Laura, encostando o seu rosto grotesco no dela. Ela olha para mim confusa, como se houvesse percebido minha expressão assustada. Eu me levanto e peço desculpas. Saio correndo para o banheiro, me tranco lá dentro e tento recuperar meu folego.
Quando finalmente encaro o espelho, não vejo meu rosto. No vidro embaçado está Nekar, com seus dentes retorcidos e podres, seus olhos escuros como dois buracos sem fundo, e chifres longos e que quase tocam o teto. Eu grito para a imagem, com raiva, dor, ressentimento. E, numa explosão de sentimento, soco o espelho. Os cacos atravessam meu punho e o sangue mancha a pia. Eu caio sentado, chorando baixinho enquanto seguro minha mão machucada. Por que comigo?
Fico assim por alguns minutos. Algumas pessoas batem na porta, até desistirem e se dirigirem até o outro banheiro. Tiro com cuidado os cacos que atravessavam a minha pele. Por sorte nenhum fez um estrago tão grande. Pego alguns curativos e amarro em volta da minha mão trêmula. Tomo um remédio para dor, respiro fundo e olho para o espelho de novo. Entre as rachaduras vejo meu próprio reflexo e suspiro aliviado. Saio do banheiro segurando minha mão. Passo pelos convidados restantes da festa e vejo entre eles Laura, conversando com um outro grupo. Sinto um pouco de constrangimento e uma pequena dor no peito. Aperto meus lábios numa linha fina e saio de casa em direção ao pronto socorro.
No dia seguinte, eu admito para meus colegas de casa que fui eu que quebrei o espelho. Dou uma desculpa esfarrapada dizendo que estava bêbado e não lembro de muita coisa. Maria e Tiago não acreditam, mas também não insistem.
Já de noite, recebo uma mensagem de um numero desconhecido. “Oi. É a Laura. A Maria disse que você sofreu um acidente na festa e por isso você sumiu!!! Fiquei me perguntando onde você se meteu!! Ta tudo bem????”
Dou um leve sorriso quando vejo a sua foto de perfil. Digo que está tudo bem sim e agradeço a preocupação. Conversamos um pouco, peço desculpas por sair do nada durante a festa. Ela diz que aceita as minhas desculpas se eu pagar uma cerveja para ela. Minhas bochechas coram, minhas orelhas queimam, meu coração dispara. Nekar sorri, vejo sua boca se mexer, seus lábios secos e podres começarem a se contorcer para formar sons, mas antes que ele possa dizer qualquer coisa eu respondo com um “ok”.
Combinamos de nos encontrar. Coloco o celular de lado e deito na cama olhando para o teto.
Vou ver Laura no outro dia.
FIM DA PARTE II
Considerações finais:
Obrigado por ler a segunda parte deste conto!
Iriam ser duas partes apenas, mas eu acabei me empolgando. Prometo que a próxima será a última! Ou não…
Aceito feedback, comentários, xingamentos e pensamentos sobre o conto. Até a próxima!
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