Ele Habita em meus Ombros - Parte I
Um conto em três partes sobre a sombra que cresce no silêncio
A primeira vez que ele apareceu eu era apenas um adolescente, num domingo de manhã durante uma missa qualquer. Minha família sempre foi muito católica. Minha mãe, uma mulher linda, alta, inteligente, sempre fez questão do seu único filho frequentar a Igreja e ser um membro assíduo. Meu pai, um homem sério, sempre bem arrumado, dos olhos verdes, e chamado de “doutor” por todos que o conheciam e respeitavam. Porém ele nunca foi tão engajado quanto minha mãe, mas frequentava todo domingo que não estivesse preso em seu escritório trabalhando em casos e falando com clientes importantes. Me deram o nome de Rafael, para representar essa união divina.
Enquanto o padre falava coisas que para mim não interessavam, eu observava os santos e santas que adornavam as paredes daquela catedral. Olhava em seus olhos esculpidos e cheios de dor, alguns com muita fé, outros vazios e assombrosos. Porém, havia uma imagem que sempre me chamou mais atenção, a da Virgem Maria. Seu rosto angelical, delicado, suas vestes tão bem construídas, com um véu na cabeça que caia até seus ombros. Os olhos fechados, um pequeno sorriso no rosto, enquanto as mãos se juntavam formando um sinal de prece. Uma santa na maior definição da palavra.
Olhando e analisando aquela representação foi quando ele apareceu. Primeiro, um sussurro lascivo que envenenou a minha mente:
“Virgem? Com uma carinha dessas? Alguém tá mentindo nessa história.”
Senti um aperto no peito, uma um choque diretamente no meu cérebro. Um sentimento estranho e pesado. Fiquei assustado com o que ouvi, enojado, confuso, mas, acima de tudo, achei divertido. Uma risada começou a se formar de dentro do meu âmago, cobri a boca para disfarçar as curvas que se formavam em meus lábios. Era um pensamento tão… errado. E por isso era tão engraçado, tão rebelde tão… atraente.
Virei-me em direção a voz e me deparei com um serzinho diminuto, do tamanho da minha mão. Ele tinha uma aparência curiosa, como saída de desenhos animados. Um corpo humanoide, sem roupas, mas sem órgãos masculinos. Um rosto pontudo, orelhas grandes e afiadas, nariz torto e encurvado, da sua testa saiam pequenos chifres e seus olhos eram tão vazios quanto de alguns dos santos, mas que eu não conseguia desviar o olhar.
Ele estava sentado ao meu lado no encosto do banco, numa pose relaxada, sorrindo como quem esperasse uma resposta ao comentário, ou sabendo exatamente o que eu achei disso. “Quem é você?” Eu sussurrei, tentando não fazer alarde nem chamar atenção dos meus pais, que estavam sentados próximos.
O pequeno pulou de seu assento, asas de morcego surgiram de suas costas e numa reverência ele disse “Apenas um companheiro.” Eu não sabia o nome dele, ele não havia me contado. Não que eu precisasse chamá-lo, dali em diante seríamos inseparáveis. Ele se tornou meu demônio particular.
No começo, ele me fazia rir. Falava as coisas mais absurdas que me geravam culpa, mas ao mesmo tempo pareciam atrativas e excitantes para minha mente jovial. Ele sussurrava coisas maldosas dos outros, julgava os colegas de classe e ria de suas vidas desgraçadas e desinteressantes. Eu ria junto. Baixinho, envergonhado, mas ria.
Ficamos assim por muito tempo, conversávamos sobre tudo e ele me atiçava de formas que eu não entendia na época. Sua voz era como uma canção fora de tom, e suas palavras a poesia mais amarga que já encontrei. Bela na superfície, mas a cada verso mostrava tons sombrios e tocava feridas abertas.
Então veio o ensino médio. Ele começou a me empurrar para experimentar coisas que eu não teria coragem de fazer sozinho. Tomei meu primeiro porre aos quinze anos, após a aula, junto com garotos mais velhos numa quarta-feira ensolarada em uma praça com bancos velhos e moradores de rua dormindo. Voltei pra casa não sei como e me enfiei no quarto. A adrenalina de estar fazendo algo que eu não deveria e tentando esconder os indícios de meus pais fazia com que eu me sentisse mais vivo. Encontrei esses garotos diversas outras vezes. Enchi a cara outras tantas. Um dia, um dos garotos, Daniel, trouxe um maço de cigarro. Todos olharam surpresos, admirados como se estivessem na presença de uma relíquia. Ele ofereceu para cada um, eu fui o único que recusou. O cheiro me incomodava. Os garotos riram de mim, me chamavam de viadinho. O demônio, decepcionado, me chamava de covarde.
Um desses dias, outro garoto, Davi, falava de forma vulgar de uma menina que eu também conhecia. Comentava do seu corpo, das suas curvas, e descrevia as suas intimidades. Ele lambia os lábios como se ela fosse um pedaço de carne, e sorria quando contava o que eles fizeram no final de semana passada. Eu queria desviar o olhar, mas não conseguia.
O meu demônio pessoal, a partir daí, ficou ainda mais insistente. Ele comentava sobre garotas de forma quase reverente, como se fossem parte de uma missão sagrada. Um desejo se formou, ele dizia que eu precisava provar o sabor de uma delas. Que dessa forma, eu me sentiria melhor, me sentiria mais homem, quando eu possuísse uma delas. Talvez assim, eles parassem de chamar de viadinho.
No outro dia, ele escolheu meu alvo. Raquel, uma garota da minha turma, que já vi sorrindo para mim algumas vezes. Éramos amigos, ela era doce, meiga, e tão bonita. A primeira garota por quem eu me senti verdadeiramente atraído. Não era apenas pela sua aparência, ela me contava tantas coisas que eu mal poderia imaginar. Falava do universo, de planetas e estrelas distantes como se houvesse visitado pessoalmente. Passávamos o intervalo todo conversando e em algumas aulas recebíamos broncas de professores por não calar a boca durante a explicação. Nos tornamos inseparáveis, algumas vezes ela deixava seu lugar perto das amigas para se sentar junto a mim. Vê-la rindo das minhas piadas e sorrindo enquanto falava dos astros me fazia feliz.
Um dia, contei para meus amigos mais velhos sobre ela. Eles se animaram, falaram que eu estava me tornando um homem, perguntavam sobre o corpo dela e os que a conheciam descreviam-na muito diferente da garota que eu via quase todos os dias. O demônio se animava em meu ombro. “É isso que você deve fazer” dizia ele com malícia em seus olhos “Seja homem e trate-a como seus amigos tratam as vadias que se relacionam.” Senti medo. Porém, eles diziam que eu precisava ser homem, tratá-la dessa forma porque era isso que as garotas gostam. Não ligar para seus sentimentos e fodê-la no seco. O demônio ria e concordava. Eu senti um embrulho no estômago, queria correr dali, queria gritar, mas de alguma forma, eles pareciam ter razão. Eles eram mais velhos do que eu. Eles sabiam. Perguntei ao demônio sua opinião. Ele concordava e bolava planos do que deveria fazer. Bebemos o resto da tarde toda.
Alguns dias passaram. Fui criando coragem e tratando Raquel de forma cada vez mais fria, conforme aconselhado pelos meus amigos. Isso geraria interesse. Seu sorriso não era mais tão presente quando nos falávamos, que segundo o demônio era um indício que ela estava me vendo como um homem e não como um garoto. Estava dando certo. Sexta-feira, era o momento, chamei-a para conversar no intervalo. Fomos para um canto escondido da escola. Ela parecia ansiosa, desviava o olhar, enquanto minhas mãos suavam e tremiam. Estávamos lá, sozinhos. O demônio falava coisas lascivas em meu ouvido, para olhar para o seu corpo ao invés de seus olhos, dizia o que eu deveria fazer com ela ali. Que era minha chance. Eu ignorei tudo isso, me senti enojado pelo que o demônio falava. Ele me xingou, me chamou de covarde, de viadinho, de fraco. Suas palavras me atravessavam, mas eu tentava me manter focado nela e em seus olhos. Eu reuni coragem e decidi fazer o que eu estava planejando. Convidei-a para ir ao cinema após a aula, assistir um filme qualquer, comer alguma coisa após a sessão. Seus olhos brilharam, ela parecia animada, um sorriso se formou e foi como se meu mundo se iluminasse. Com as bochechas coradas ela respondeu que sim, diversas vezes. Nos abraçamos e por um instante eu queria que aquele momento não acabasse mais. O demônio se mantinha calado. Quando ela foi embora, ele me disse, de forma estoica como eu nunca havia visto antes: “Não estrague tudo.”
Após a aula, nos encontramos no pátio. Ela sorria e não parecia tão distante quanto nos últimos dias. Eu, esperançoso e tímido, sorria de volta e desviava meu olhar. Fomos em direção ao shopping, pegamos um ônibus e passamos o caminho todo conversando. Eu estava uma pilha de nervos, porém tentava enxergar o comportamento dela e reagir de acordo. O demônio dizia coisas perturbadoras no meu ouvido e me depreciava quando eu o ignorava. Raquel falava, animada, de tudo que fizera nos últimos dias e não conseguiu me contar. Eu ri de algo que eu mal conseguia ouvir. O som das palavras que saiam de sua boca era abafado pelos sussurros que o demônio proferia no meu ouvido, como um doce veneno: “Ela tá te dando mole. Agora é só aproveitar, ninguém vai te dar uma chance tão óbvia quanto essa, fracassado.”
Chegando ao cinema, compramos ingressos para um filme que ela queria assistir. Comprei pipoca para nós dois e nos sentamos no fundo da sala, que havia apenas mais uma dúzia de pessoas. Eu conseguia sentir a malícia emanar do demônio repousando em meu ombro. Tentei ignorar, não queria estragar tudo, porém suas falas pareciam cada vez mais certas. Eu precisava fazer algo ou perderia a chance. O filme começa. Eu como algumas pipocas, mesmo que o embrulho no estômago me fizesse perder todo o apetite. Precisava fingir que estava tranquilo. Após alguns minutos de filme, eu vejo a mão dela, ali, repousada no braço da poltrona. Num momento de coragem eu levo minha mão até a dela. O tempo parece passar mais devagar, eu mantenho meus olhos fixos na tela do cinema, ainda que minha atenção estivesse totalmente focada nos meus movimentos. Então, nossas mãos se tocam, eu repouso a minha sobre a dela. Espero alguns segundos, e ela mantém a dela parada, abaixo da minha. Um sinal de consentimento. O demônio ri.
Alguns minutos se passam assim, ela tira a mão debaixo da minha e pega mais pipoca, e então repousa-a sobre a perna. O demônio fala para eu tentar de novo. Eu hesito, mas ele insiste diversas vezes. Sinto minha testa suar, meu coração acelera. O demônio insiste mais, me empurrando cada vez mais para tentar. A sala parece cada vez mais escura, o som do filme abaixa até ficar completamente mudo. Então estamos só eu, Raquel e o demônio, e o cheiro de enxofre que emanava do seu hálito, entupindo minhas narinas e cegando meus sentidos. Começo a ficar sem ar. O demônio pula na minha frente e seus olhos são como dois buracos negros, sua face completamente séria num tom hostil. “Moleque covarde do caralho.” Ele tem razão, eu não posso continuar sendo um covarde.
Eu faço o mesmo movimento, mas agora sobre a mão em cima da coxa. Na hora ela recua e cruza os braços. O demônio se irrita. “Vadia. Está se fazendo de difícil.” Eu me incomodo com o comentário, mas também me incomodo com o fato dela ter recuado. Depois de alguns momentos, ela repousa mais uma vez a mão sobre a cadeira. Eu coloco a minha sobre a mão dela, e novamente ela recua. O demônio se irrita mais e eu começo a sentir um aperto no peito. “Fracassado. Você se abriu demais. Se você não tivesse sido tão bonzinho no ônibus isso não teria acontecido.”
Não tentei mais nada durante o filme. Acabou e saímos da sala sem comentar sobre o ocorrido. Eu fiz comentários sobre o que acabamos de assistir, isso deixou ela um pouco mais tranquila, mesmo que o desconforto ainda tingisse suas respostas. Conversamos um tempo, fomos até a praça de alimentação e pedimos um lanche para cada. Nada de especial, apenas para revestir o estômago, mesmo que meu apetite ainda estivesse quase nulo. O demônio se mantinha calado, parecia observar toda a situação e ponderar os próximos passos. Raquel parecia mais tranquila, espontânea, falava do que gostou do filme e do que não gostou. Gesticulava com os braços e se animava ao falar do desfecho da história. Era como se houvéssemos assistido a filmes diferentes, ou eu não prestei tanta atenção já que estava focado demais nela. Ela falava do ator principal, da aparência dele, de suas qualidades. O demônio ri de mim e fala como eu não chego aos pés dele. Eu me sinto desconfortável e repito, por impulso, as palavras do demônio.
“Acho que só caras como ele são o tipo certo para garotas como você.” E me calei antes que percebesse o que eu queria dizer com isso.
Nesse momento o sorriso de Raquel some de sua face, e um se forma na do demônio. Eu quis arrancar minha própria língua. Até que, um instante depois ela força uma risada sem graça, desvia os olhos e muda de assunto. O demônio sorria em silêncio, como se assistisse uma peça trágica em andamento, completamente satisfeito.
Conversamos mais um pouco. No final da tarde, decidimos voltar para casa, nosso trajeto não é o mesmo então é a hora da despedida. Ela me abraça e agradece o convite, nos mantemos assim por alguns segundos. Quando ela se afasta, seus olhos fixam nos meus. “Vai logo!” diz o demônio no meu ombro, sua voz era como um trovão abafado. “Você nunca vai ser bom o suficiente, mas pelo menos você pode tentar.”
Minha cabeça vai em direção dela antes que eu pudesse pensar no que fazer. O sangue batia alto em meus ouvidos, meus olhos cerrados, minhas mãos suadas segurando os braços dela. Mesmo assim, não há contato. Quando ela se afasta, olhos arregalados, eu soube que, naquele momento, estraguei tudo. Ela reage com frustração, raiva, até um pouco de decepção. Fala coisas para mim que eu não conseguia ouvir por debaixo da risada alta e estridente do demônio. Ela vira as costas e sai batendo os pés e com os braços cruzados. Eu fico ali, paralisado, confuso, sem conseguir reagir. Estava ocupado demais tentando respirar.
“Viu? Eu tentei te avisar. Você não serve para isso.” O demônio ri, com um ar de satisfação. “Você é um erro ambulante.”
Nos dias seguintes, Raquel não olha mais para mim, não fala mais comigo, e me evita de todas maneiras. Eu tento respeitar a decisão dela, eu também não iria querer estar comigo. Logo, o demônio fica cada vez mais agressivo e fala coisas que me machucam profundamente. Porém, dentro de mim, eu acredito em todas elas. Até que numa manhã qualquer, eu acordo e vejo o demônio sobre o meu peito, maior do que ele já fora. Se antes ele era do tamanho da minha mão, agora ele era do tamanho do meu braço e muito mais pesado do que aparentava. Seu corpo esmagava o meu peito, eu implorei para sair de cima de mim, mas ele ria constantemente de mim, parecia se saciar do meu desespero. Tentei tirá-lo à força, mas eu me sentia exausto, como se houvesse passado a noite em claro. Meus braços mal me obedeciam enquanto ficavam ali paralisados contra os lençóis. Até que eu desisti e me mantive pelo resto da manhã inerte enquanto ele ria, babava em cima de mim e olhava fixamente para o meu rosto.
Isso se repetiu por diversas vezes. Me sentia constantemente exausto. Lidar com os comentários do demônio me drenava todos os dias, sugando todas minhas energias enquanto parecia saciar a sua sede incontrolável. Ele parou de julgar tanto os outros e começou a focar seus comentários em mim. Tento refutar algumas vezes, só para ser recebido com mais risadas das minhas reações. Ele se deleitava no meu desespero.
Da próxima vez que eu vi meus amigos, eles me perguntam o que aconteceu comigo e Raquel. Eu hesitei, não queria dizer o completo fracasso que foi nosso encontro. Eles riem e me provocam o tempo todo, minhas bochechas ficam coradas, não sei como responder. O demônio, como se esperasse o momento perfeito, disse apenas uma palavra: “Minta.” E eu menti. Falo que foi melhor do que poderiam imaginar. A criatura parecia orgulhosa de mim e suas palavras se tornam ainda mais instigantes, agora ele dizia para eu crescer cada vez mais a mentira. Não pude resistir. Eu disse que nos beijamos, eu disse que ela me deixou tocar nela e que ela tocou em mim. Os garotos se animam, Davi dá um tapinha nas minhas costas e diz que está orgulhoso da minha atitude. Não sei como compraram essa mentira, talvez fora a bebida, ou eu sou um farsante profissional. A risada deles ecoava pelo parque, enquanto o demônio se mantinha calado, com um sorriso no rosto. E eu, ficava ali, mentindo e descrevendo coisas que nunca ocorreram. O demônio não falou mais nada naquela tarde, ele não precisou. Era como se soubesse que a queda já estava em andamento.
Nos meses seguintes, eu parei de conversar com esses amigos. O tempo vai passando, e eles se formam no colégio. Logo eu estou no segundo ano do ensino médio. Mal interajo com meus colegas, mas tudo bem, o demônio sempre me diz quando eles me olham torto e falam pelas minhas costas. Não preciso deles. Começo a procrastinar cada vez mais minhas tarefas, falhar em provas, evitar responsabilidades. Sinto um medo descomunal de não conseguir, então para quê tentar? Vejo que o demônio tem razão, como se me cuidar não adiantasse nada, eu não mereço cuidado, não mereço afeto, muito menos mereço ser feliz. Passo meus dias isolado. Não bebia mais tanto, já que não conseguia ter acesso ao álcool tão facilmente como meus antigos amigos.
À noite, após meus pais dormirem, na escuridão, apenas com o celular ligado, o som abafado, meu rosto sendo iluminado pela pequena tela mostrando imagens trêmulas. Era uma repetição tediosa, sem vontade, com um propósito ínfimo. No fim, ficava ali deitado, ainda acordado, como se eu não tivesse feito nada, mas sentindo que fiz até demais. “Agora é isso que te satisfaz? Parabéns. Você é mesmo um campeão.” O serzinho diminuto ria enquanto olhava para os meus olhos apáticos. Eu só queria sentir algo. Um alívio momentâneo, mesmo que eu terminasse sentindo nojo de mim. Eu queria fugir.
Um dia, eu chego em casa tarde. Meus pais brigam comigo, perguntam onde eu estava. Eu grito com eles, descarrego toda minha dor em raiva direcionada. Subo para o quarto e me isolo. Pela primeira vez me sinto louco. Olho para o demônio e pergunto “Você é real mesmo? Ou eu estou ficando louco?” A criatura se diverte com a minha indagação, pulando dos meus ombros e sobrevoando o meu redor com suas pequenas asas de morcego. Ele está ainda maior do que quando nos conhecemos. “Você nunca vai saber!”
A dúvida me atormenta pelos próximos dias. Eu olho para o demônio, converso com ele, ouço suas provocações e comentários, mas nunca consigo discernir se ele é real ou uma criação da minha mente quebrada. Ele dizia que poderia provar para mim que é real, mas que não o faria porque é muito mais divertido me ver confuso sem nunca encontrar respostas. Então decidi acreditar nele, que ele existe e eu estou possuído por um demônio. Eu precisava de ajuda.
Na mesma noite fui conversar com meus pais. Minha mãe estava no fogão fazendo janta, meu pai sentado à mesa lendo um livro enquanto esperava a comida ser feita. Eu me sento junto a eles e digo que precisava contar algo. Minha mãe parece ficar ansiosa, seus olhos se viram para mim, enquanto meu pai mal tira os dele do livro. Eu começo a contar a história, de como num domingo qualquer, poucos anos atrás, eu ouvi um sussurro, seguido por uma imagem. Minha mãe parece se preocupar mais, meu pai finalmente tira os olhos do livro e fixa-os em mim. Falo do demônio e das coisas que ele me diz para fazer, da aparência dele e de como ele se deleita na minha desgraça. Falo de como seu chamado é difícil de resistir, como uma compulsão, uma promessa que se disfarça de desejo, um sussurro que vira necessidade. Os dois ficam paralisados, sem dizer uma palavra por longos segundos. Eu mantenho a cabeça baixa. O demônio, pesando em meu ombro, parecia se aproveitar a tensão que pairava pelo ar.
O silêncio é quebrado quando minha mãe ri. “Ai, Rafael, pare com essas brincadeiras!” Meu pai não diz nada, apenas continua me observando. Eu insisto que não é brincadeira nenhuma. A expressão da minha mãe muda. Ela me repreende mais uma vez, diz para eu parar. Eu insisto que é verdade, eu não sabia mais o que fazer.
Ela me manda para o quarto. Eu grito com ela, digo que ela é egoísta, que não liga para mim. Meu pai observa tudo, com seu olhar frio por cima dos óculos, sem dizer uma palavra sequer. Eu subo para o quarto, frustrado, batendo os pés e em seguida a porta. O demônio repete as frases de minha mãe em tom de zombaria. “Você é um idiota por achar que alguém acreditaria em você.” O que não sabíamos ainda, é que meu pai acreditou em mim.
Numa manhã de sábado, com nuvens obscurecendo o céu e uma garoa fina batendo na janela, foi quando meu pai entrou no meu quarto antes que eu pudesse levantar. “Se vista, há alguém aqui para te ver.” Assustado, eu não consigo imaginar quem poderia ser. Nenhum colega de classe viria me visitar do nada. Pensei na Raquel, uma pitada de expectativa surgiu em meu coração. Mas era óbvio que não poderia ser ela, não nos falamos há meses. Me vesti rapidamente, desci as escadas e me deparei com uma figura desconhecida sentada à mesa da sala de jantar. Era um homem velho, grande, ombros largos, vestia uma batina. Seu rosto era cheio de rugas e protuberâncias, tinha um cabelo ralo e grisalho por debaixo do chapéu redondo. No seu pescoço estava uma corrente com uma cruz. Eu comecei a entender o que estava se passando.
“Bom dia, meu jovem.” Disse o velho com sua voz ríspida e cansada. Meu pai apresentou o homem, chamava-o de Irmão Ezequiel. Era um padre, ou pelo menos eu deduzi que fosse. E segundo ambos, estava ali para me ajudar. Com os olhos eu procurei minha mãe, como se ela pudesse me salvar do que estava por vir. Ela não estava em casa.
Senti o cômodo apertar, as luzes ficarem tremulas, minha cabeça rodar. Meu coração batia forte contra meu peito, balbuciando eu perguntei o que eles queriam dizer com me ajudar. Eles pediram para que eu os acompanhasse até meu quarto e iriam explicar tudo. Eu obedeci. Deixei-os entrar no meu quarto e sentei na cama, com as pernas juntas e meus braços cruzados. O demônio não se expressara até então, nunca o vi tão calado. Pensei que talvez ele estivesse preocupado com o que poderia acontecer. Talvez, ele estivesse com medo. Senti esperança.
O homem começou a explicar o que seria feito, e dizendo que o que eu descrevi se parece com uma possessão, e que eu fui muito corajoso por falar com meus pais antes que o demônio ganhasse mais força. Perguntou se eu estava bem, confortável. Eu respondi que sim, mesmo sendo uma meia verdade. Meu pai se mantinha no canto do meu quarto, calado, apenas observando. Ezequiel retira alguns itens de sua maleta. Uma bíblia, um rosário, um frasco com água. Ele desliga as luzes e acende algumas velas e me pede para deitar. Eu obedeço e fico parado, ansioso, sem saber o que vai acontecer. O demônio se afasta — outro comportamento incomum — e senta-se na cabeceira da cama, ainda calado. Nenhuma piada, nenhum comentário, nenhuma provocação. Apenas um silêncio perturbador e olhos escuros como a noite fixos no ritual.
Ezequiel abre sua bíblia e começa a recitar passagens em latim, não consigo reconhecer nenhuma delas. Ele pega um pouco da água e joga em mim, mais preces em latim e em português são proferidas. A luz das velas começa a tremer, meu quarto fica mais escuro, sinto que ele diminui a cada frase que chegam aos meus ouvidos. O velho padre parece cansado, ofegante. Passando um paninho na testa enquanto lê passagens e joga mais água em mim. Isso se repete por muito tempo. Os minutos parecem horas, fico preso ali, sem saber se estava funcionando ou não. Olhava para o demônio e não conseguia ver diferença em seu semblante.
O padre começa a rezar o Pai Nosso, alto, diversas vezes, em latim e em português. Depois de repetir, ele se aproxima de mim e assopra o meu rosto e diz frases imperativas sobre a vitória de Cristo contra o Diabo. Comandando o demônio deixar a minha alma.
Quando eu olho para o alvo, a pequena criatura sentada na cabeceira da cama boceja. Ele não estava preocupado por nenhum momento, eu finalmente entendo isso. Ele estava entediado.
Não há como vencê-lo.
Ao fim, Ezequiel pede para eu me sentar e começa a me analisar. Pede para eu falar alguns versículos, algumas rezas, pede para eu tocar em um relicário. Então, vendo que não há reação adversa, ele conclui que está tudo bem, o exorcismo deu certo. Meu pai contesta, que foi mais tranquilo do que ele imaginava que seria. O padre assegura que está tudo nos conformes e que ele não deveria acreditar em tudo que vê nos filmes. Eu me mantenho calado, sem reação, sem avisar que não deu certo. Não teria como dar certo. Não há esperanças.
O padre se despede, enquanto meu pai não dirige nenhuma palavra para mim. Os dois me deixam sozinho no meu quarto, atônito, confuso, quebrado. O demônio finalmente salta da cabeceira para o meu ombro, sua habitação comum. Sinto sua respiração no meu ouvido, o cheiro de enxofre vindo da sua pele áspera e de seu hálito, suas garras afiadas pinicando contra meu corpo.
“Até Deus te abandonou.”
Passo o resto do dia no meu quarto, sem falar com minha família. Minha mãe não faz ideia do que ocorreu pela manhã, meu pai nunca mais falou sobre nada disso. À noite eu tenho dificuldade para dormir, o demônio zomba de mim e reencena de forma debochada o exorcismo. Ele ri das próprias piadas e ri ainda mais do momento em que eu percebi que tudo isso era apenas um esforço fútil. De madrugada, eu consigo cair no sono. Meus sonhos são confusos, sombrios, até mesmo abstratos. Eu sinto dor, muita dor. E ouço a risada estridente do demônio ecoar pelo meu corpo.
Pela manhã, eu acordo tarde, tento me levantar. O demônio, novamente sobre o meu peito. Porém, ele parecia maior. Muito maior. Seu sorriso era ainda mais assustador, seus olhos mais escuros, sua orelha e chifres formavam garras tão afiadas quanto as que pressionavam contra o meu peito. Era como um bloco que me prendia contra minha cama, mas a essa altura eu já sabia bem. Não há motivos para tentar resistir. Eu já conhecia essa dinâmica, já era familiar em como ele operava. Eu só não entendia porquê eu, porquê disso tudo. Então, resolvi perguntar porque ele insiste em estragar tudo.
“Oras, eu estou cuidando de você.” Ele responde enquanto olha no fundo dos meus olhos. “Não fui eu que te forcei a fazer essas coisas, eu só revelo o que está no fundo da sua alma. Seus desejos mais primitivos, mais verdadeiros. Eu estou te ajudando se você pensar direito.” Eu tentei protestar, mas ele continuou. “Eu apenas revelo quem você é de verdade. Eu sou seu único amigo, a única pessoa que te conhece melhor do que ninguém. E você é a fonte da minha felicidade.”
O demônio ri, como de praxe quando se depara com meu desespero. Eu sinto que é verdade, ele me conhece melhor do que ninguém. Mas eu não o conheço da mesma forma. Num momento de impulso, eu finalmente pergunto, qual o seu nome. O demônio hesita, pela primeira vez em todos esses anos. “Você quer mesmo saber?” Eu respondo que sim. Ele sorri, um sorriso pequeno, mas cheio de malicia.
“Nekar.”
O nome ecoou em minha mente como uma maldição antiga. Como se estivesse sempre ali, apenas esperando o momento certo para ser proferida em voz alta. Sinto meus ossos gelarem ao ver a satisfação no rosto da criatura.
“Agora somos íntimos.” Sussurra Nekar.
Finalmente entendo. Ele é uma parte de mim, assim como eu sou dele.
FIM DA PARTE I
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Considerações finais:
Obrigado por ler este conto!
No começo eu pensei em fazer uma história curtinha, com poucos acontecimentos, sem aprofundar muito. Conforme fui escrevendo, fui tendo mais ideias e mais páginas foram sendo adicionadas. Então, decidi dividir em duas partes, já que seria meio intimidador ler um texto gigante nesse site. Eu acho.
Nas ilustrações eu tentei puxar um tom mais de terror, então me inspirei na arte de Barry Windsor-Smith, especificamente em seu quadrinho Monstros. Não chego nem perto de dominar a técnica de hachuras como ele, mas gostei do resultado.
Enfim, espero que você tenha gostado. Aceito feedbacks sobre o que posso melhorar no próximo. Considere se inscrever para não perder a segunda parte desse conto e outros textos aleatórios!